“Quem vê caras não vê corações” – A Propaganda Russa via Religião

Категорія: SOS Ukrania pt
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2“Quem vê caras não vê corações” – A Propaganda Russa via Religião
A forma de fazer a guerra que tem caracterizado o Kremlin e Putin, mesmo que fraca noutros aspectos,tem sido forte em duas coisas: por um lado, na intensidade de poder de fogo e na quantidade do número dos homens enviados para o sacrifício final; mas, por outro, também no modo como a máquina de propaganda serve para controlar, conter e neutralizar qualquer revolta interna dos cidadãos russos contra o regime. Vladimir Putin poderá continuar a guerra até ao esgotamento dos recursos,que na Rússia até abundam. Também poderá prolongar o conflito por muitos anos, dadas ascondições de uma sociedade absolutamente controlada e domesticada, como corresponde àdoutrina soviética, repressiva e holística, da segurança total do Estado.
Tradicionalmente, o factor da religião tem sido, na Rússia, um desses meios de propaganda para o controlo da sociedade, tanto na versão do ateísmo de Estado, como sucedeu na era soviética, quanto por via do cristianismo ortodoxo russo. Recorde-se que os czares russos sempre sonharam converter o império russo na “Terceira Roma”, com Moscovo como principal centro espiritual dos cristãos de todo o mundo.
A nova Rússia saída dos escombros da União Soviética foi meticulosamente arquitetada pela intelligentsia herdeira do Kremlin para reincarnar as glórias da grande Rússia. Isso reflecte-se, de forma ostensiva, no simbolismo desse sonho espiritual e religioso, tal como está patente no brasão da República Federativa da Rússia. Nesse brasão estão representadas três coroas, por cima das duas cabeças de uma águia bicéfala. No século XXI, tantoo Vaticano quanto Constantinopla procuram formas de diálogo inter-religioso que nos aproximem da unificação do mundo cristão. Já a Igreja Ortodoxa Russa vê nessa fusão uma ameaça. Ou então apenas a concebe em versão russificada, completamente sujeita à sua hegemonia e à hegemonia da língua russa.
De uma forma geral, a Ortodoxia Russa é muito diferente das outras igrejas cristãs, podendo até ser difícil para não-russos entenderem imediatamente essa diferença. A Bíblia na Rússia é a mesma Bíblia de Constantinopla, mas a questão está na interpretação que lhe é dada pelo Kremlin.
Recordo que, numa visita à Ucrânia, feita com amigos portugueses ainda antes de 2014, passámos pelo convento de Pochaiv, no oeste da Ucrânia.Desde o século XIII até ao século XVIII, este convento de renome pertenceu aos ortodoxos e aos greco-católicos ucranianos. Mas posteriormente foi retirado à força aos ucranianos pela Igreja Ortodoxa Russa. Os meus amigos portugueses puderam admirar a majestosa estrutura do convento em estilo barroco, que se impõe logo do exterior. Mas, ao entrarem no convento, avistaram guardas e seguranças ostentando autocolantes com símbolos russos e ladeados por cartazes informativos onde se informava que «assassinos e católicos não se podem confessar aqui». Assim, toda a beleza externa do monumento repentinamente ficou maculada e mudou de sentido para uma desagradável sensação de uma hostilidade nada cristã.
Na verdade, a procura do diálogo entre as outras igrejas cristãs e a Ortodoxia de Moscovo mais parece uma tentativa de lançar pontes entre o mundo atual e a adormecida Idade Média. Enquantohoje a Igreja Católica – no mundo, mas também em Portugal – pede perdão pelos crimes cometidos por alguns dos seus sacerdotes, a Igreja Ortodoxa Russa benze os mísseis que atingem civis, crianças e famílias inteiras ucranianas.
O que aqui estamos a retratar nem sequer é apenasa actividade do conhecido agente da KGB, o Patriarca Kirill. Trata-se antes de uma recente entrevista que se pode ver no portal noticioso católico “The Pillar”. Nela o jornalista da Rádio Renascença, Filipe d’Avillez, fala com o bispo da Igreja Ortodoxa Russa para a Espanha e Portugal, Petru Pruteanu. Recordo, porque não deixa de ser significativo, que o jornalista em causa é também responsável por retransmitir a voz da Igreja Ortodoxa de Moscovo para o mundo católico.
Se lhe seguirmos o rasto, apuramos que já em 2018Filipe d’Avillez entrevistou o Metropolita Hilarion da Igreja Ortodoxa Russa para a Rádio Renascença. Nessa entrevista, o prelado declarou o seguinte: «“Mas desde o princípio deste conflito que os greco-católicos tomaram um lado particular e continuam a usar uma retórica agressiva, que frequentemente assume um carácter anti-ortodoxo. Não concordamos com isso”, admite o Metropolita».
Nesta sequência, a publicação em causa reflecte o facto de os ortodoxos russos se queixarem da expansão dos greco-católicos para o leste da Ucrânia. A esse respeito refere o seguinte:«Acreditamos que isso não vai trazer paz, nem harmonia, nem reconciliação. Pelo contrário, vemos muitos conflitos a surgir por causa desta expansão».Assim, não sabemos se consciente ou inconscientemente, o jornalista português transmite um aviso ao mundo ocidental por parte da Igreja Ortodoxa Russa. E esse aviso tem um claro significado à luz daquilo que veio a seguir: a tentativa russa de se apoderar de toda a Ucrânia,sob o pretexto de «pacificar os agressivos greco-católicos», ocorrida faz agora um ano, em 24 de fevereiro de 2022. Esta é mais uma prova de que Vladimir Putin preparou, antecipada emeticulosamente, a agressão contra a Ucrânia em perfeita coordenação e sintonia entre a Igreja Ortodoxa Russa, o Ministério das Relações Exteriores da Rússia e todos os Serviços de Segurança e Informações Russos.
Acontece que, para o Kremlin, Portugal não é apenas mais um país da UE e/ ou da NATO. É a terra de Fátima e das revelações dos Três Pastorinhos sobre a derrota da Rússia e um dos locais de peregrinação mais famosos do mundo católico. Todas as mensagens que vêm de Fátima têm uma especial credibilidade não só para os católicos portugueses, mas para o mundo livre até aos confins da Ásia. Provavelmente por isso, um dos melhores diplomatas de Sergey Lavrov, o embaixador Mykhailo Kaminin, que organizou o encontro entre o Papa Francisco e o Patriarca Kirill em Havana, Cuba,em 2016, foi nomeado embaixador da Rússia em Portugal em 2018. Com efeito, trata-se de alguém com uma vasta bagagem e experiência de cooperação e contactos, ao mais alto nível, na Cúria Romana, nas diversas hierarquias católicas e em especial junto dos apologistas da chamada OstPolitik, tão em voga durante o pontificado de Paulo VI. Acresce que o diplomata em questão é filho de Leonid Kaminin, um dos mais famosos propagandistas da era soviética, serventuário do imperialismo da URSS, e que foi editor do famigerado jornal "Izvestia" nos países de língua portuguesa e espanhola.
A Rússia tem uma enorme capacidade no que diz respeito à sua máquina de informações, propaganda e de contra-propaganda. É considerada uma das melhores escolas do mundo em tal matéria, com uma extraordinária capacidade de transmitir a sua propaganda ao mundo. Neste campo, ao contrário do que sucede noutros, os russos nunca se pouparam esforços, recursos financeiros e humanos, como diria um célebre agente e especialista em propaganda da KGB, Yuri Bezmenov, que acabou por desertar para os Estados Unidos da América.
Voltando à entrevista feita por Filipe d’Avillez ao Bispo da Igreja Ortodoxa Russa em Espanha e Portugal, Peter Pruteanu, os ucranianos – que já perderam milhares de familiares e amigos devido à agressão russa – conseguem de imediato ler nesta entrevista uma nova táctica da propaganda russa. Trata-se de montar a farsa de uma condenação frontal da guerra contra a Ucrânia por sacerdotes da Igreja Ortodoxa Russa, que até chegam a lamentar a excessiva proximidade entre a Igreja e o Kremlin,mas que, no essencial, acabam por manter e corroborar o núcleo da propaganda vinda do Kremlin, segundo o qual a Rússia tem direito ao “território canónico” da Ucrânia.
Esta entrevista contém imprecisões graves, recorrendo sem pejo à mentira, designadamente quando fala do alegadamente bem-sucedido diálogo do bispo ortodoxo com os ucranianos em Espanha – quando na verdade o que aconteceu foi que, Russa logo desde o início da criminosa agressão em grande escala ordenada pelo senhor do Kremlin faz agora um ano, os ucranianos passaram a recusar e boicotar qualquer proximidade à Igreja Ortodoxa. Outra manobra da propaganda russa muito veiculada na comunicação social em Portugal é o recurso a um conjunto de patranhas e truques desinformação sobre os motivos da saída da Embaixadora da Ucrânia em Lisboa, Inna Ohnivets –quando, de facto, se tratou apenas de uma simples rotação diplomática, perfeitamente normal. Assim, o referido bispo ortodoxo russo (ou deveríamos dizer: o referido agente mitrado?) repete as insinuações damáquina de propaganda russa, quando na realidade a embaixadora ucraniana até foi promovida e ocupa agora um alto cargo no Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia. Tudo isto tem, como é óbvio, o propósito de para tentar convencer os católicos ocidentais, que não conhecem bem a realidade das Igrejas orientais, de que a Ucrânia, embora tenha o direito à independência, pertence historicamente à "Rússia canónica".
Em diversas circunstâncias, os bispos da Igreja Ortodoxa Russa também vão repetindo e refletindo, como meras caixas de ressonância, uma outra das posições oficiais do Kremlin: o pretexto da NATO. Fazendo de anjinhos, os hierarcas sustentam que a agressão russa contra a Ucrânia é justificada, inevitável e indispensável para deter as alegadas provocações e tentativas de expandir a influência ocidental para os territórios canónicos da Rússia. Não deixa de ser curioso contemplar como este espaço de influência reivindicado pela Igreja Ortodoxa Russa também coincide com as ambições imperialistas de controlo territorial de Vladimir Putin…
Outra prova da astúcia desta entrevista é a menção ao padre Arseniy Sokolov que esteve em Portugal no início da vaga de imigração em massa de ucranianos, no final dos anos 90 do século passado– esse mesmo que publicamente insultou a bandeira nacional ucraniana, apodando-a de bandeira nazi. Será que o padre ortodoxo russo viu a luz, tal como São Paulo que, prostrado na estrada de Damasco,passou de perseguidor de cristãos a um de seus maiores apóstolos?
Na religião cristã, a transformação da pessoa que procura a salvação ocorre por meio do sacramento do arrependimento. Ora, no caso do bispo PetroPruteanu, nós os ucranianos, não vislumbramos o mais pequeno sinal de arrependimento. Pois ele continua incessantemente a promover e apoiar a nossa destruição física e espiritual enquanto nação. O que vemos é, isso sim, um propagandista da carga de mentiras com que a Rússia procura justificar o prolongamento da guerra por mais anos e por vários e outros meios.

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