Será possível atingir a linha do horizonte?

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O centenário da Revolução de Outubro devia servir de reflexão para não se ser levado a um ponto de desespero em que se queira repetir experiências totalitárias sangrentas como o comunismo e o fascismo

José Milhazes

Pode-se dizer mal do capitalismo e da “democracia burguesa”, e há fortes razões para isso, mas a vida mostrou que é “pior a emenda que o soneto” apresentar o marxismo-leninismo como alternativa. Que o comunismo continue a ser a linha do horizonte.

Li com muita atenção o discurso feito por Jerónimo de Sousa a propósito das comemorações da Revolução de Outubro de 1917 na Rússia e vi nele a velha táctica de dizer meias-verdades a fim de nos convencer a repetir uma experiência política, social e económica que falhou nos numerosos países em que foi realizada.

A determinada altura, o secretário-geral do Partido Comunista Português escreve: “Em relação à Revolução de Outubro mistificam culpando-a pelas deformações, erros e desvios, que em determinadas condições históricas, deram origem a um “modelo” que se prolongou no tempo e, como temos afirmado, se afastou e contrariou o ideal e o projecto comunistas em questões fundamentais do ideal comunista e dos objectivos que conduziram à sua realização”.

O dirigente comunista prefere criticar os “mistificadores”, mas não esclarece quando começaram as deformações, erros e desvios que foram contra o projecto comunista, e esta questão é fulcral. Será que o primeiro desvio ocorreu quando Vladimir Lenine, dirigente comunista que dirigiu a citada revolução, ordenou, em 1918, a dissolução da Assembleia Constituinte, o único órgão democraticamente eleito pelos povos da Rússia e um dos símbolos reais do pluripartidarismo conquistado com a Revolução de Fevereiro/Março de 1917? Será que esses desvios começaram com Estaline? Ou com Khrutchov? Ou com Gorbatchov?

Depois de se definir o início das deformações, erros e desvios, importa também saber em que período ou períodos da história soviética se deu o seu fim. Na era de Brejnev, Chernenko e Andropov, oficialmente considerada a era do “socialismo desenvolvido”, que dava acesso imediato ao “comunismo”?

Afirma Jerónimo de Sousa que a Revolução de Outubro “permitiu a largas massas tomar o destino nas suas próprias mãos”, mas onde? Na URSS, então explique durante quanto tempo e como.

Em todo o discurso, apenas encontrei uma alusão a este propósito, resumida na frase: “os trágicos acontecimentos no Leste europeu e na URSS no início dos anos noventa”.

Aqui há claramente um erro nas datas, pois para o PCP os “trágicos acontecimentos” começaram em meados dos anos oitenta, quando Mikhail Gorbatchov foi eleito secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética e os povos do Leste europeu e da URSS readquiriram o direito de decidir o seu destino, restabeleceram aquilo que os comunistas portugueses dizem defender, mas os seus camaradas soviéticos, ao som dos aplausos deles, negavam aos povos por eles dominados: pluripartidarismo, liberdade de expressão, etc.

Diz o dirigente comunista: “O quadro da luta dos comunistas apresenta por esse mundo fora uma grande diversidade de soluções, etapas e fases da luta revolucionária”, mas seria bom exemplificar para que compreendêssemos, para sabermos: em que planeta? Nalgum país do antigo bloco soviético? Na China? Na Coreia do Norte? Em Cuba? No Vietname?

Além disso, ao mesmo tempo que enumera os crimes do capitalismo, bem como as guerras e os milhões de mortos por ele provocados, não utiliza o mesmo critério na análise das experiências comunistas, porque estas não cometeram, nem cometem crimes hediondos, provocam “apenas” “erros” e “desvios”.

Porque falharam todas as experiências de construção do comunismo, Jerónimo de Sousa defende: “a actualidade do socialismo e a sua necessidade como solução para os problemas dos povos por esse mundo fora exige ter em conta uma grande diversidade de soluções, etapas e fases da luta revolucionária, certos de que não há “modelos” de revoluções, nem “modelos” de socialismo, como sempre o PCP defendeu, mas sim, leis gerais de edificação socialista: poder dos trabalhadores, socialização dos principais meios de produção, planeamento – e, sobretudo, como elemento decisivo, a edificação de um Estado que promova e assegure a participação empenhada e criadora das massas na edificação da nova sociedade”.

Será que o PCP tem a chave do segredo, do tal modelo original, milagroso, para realizar uma experiência que nunca deu bons resultados? Não acredito, porque o secretário-geral do PCP não está a falar verdade, por exemplo, quando afirma que o seu partido nunca defendeu modelos de revolução ou de socialismo. A URSS não era um “farol”?

Neste discurso, Jerónimo de Sousa continua a insistir que a Humanidade, faça o que fizer, não escapará à construção do “socialismo” e do “comunismo”, mas, felizmente, das suas palavras torna-se evidente que esta inevitabilidade é uma questão de fé: “Sim, a Revolução de Outubro continua a anunciar que outro mundo é possível!”.

O dirigente comunista sublinha também a existência de: “uma operação de desinformação, intoxicação e manipulação das consciências brutal à escala planetária, que visava erradicar das aspirações e do horizonte da acção dos homens qualquer possibilidade de concretização de um projecto emancipador que o projecto comunista transporta”.

Discordo profundamente dessa operação, se é que ela realmente existe, por uma simples razão: porque acho que o comunismo do PCP deve continuar a ser um “horizonte”, no sentido em que nunca alguém o alcançará por muito que se esforce.

Com isto não quero afirmar que se deva deixar passar de forma despercebida um acontecimento tão importante como o golpe de Estado comunista de 1917. Pelo contrário, deveria servir de reflexão para que os humanos não sejam levados a um ponto de desespero que queiram repetir experiências totalitárias sangrentas como o comunismo ou o fascismo

José Milhazes

Observador

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